Perdas de mãe
Era uma vez uma mulher que
gostava de voar pelos céus. Loira, alta, esguia, andava sempre muito elegante
em seu tailer escuro, sapatos de
salto e cabelos presos no alto da cabeça. Discreta, sabia ser firme apesar do
tom baixo e pausado da voz. Esse era (e ainda é) seu grande charme: uma voz que
consegue ser assertiva, doce e suave ao mesmo tempo. Que diz com seriedade, sem
deixar de ser amável. Que revela uma mulher com personalidade e presença, sempre
envolta em uma bruma de extrema tranquilidade.
Ela tinha por volta dos trinta
e não queria ter filhos. A vida no ar não combinava enjôos, barrigão, leite
vazando, viroses repentinas. Muito menos com muitos dias ausentes por esse mundão
afora!
Trabalhava na primeira classe
de uma grande companhia aérea internacional, assessorando pessoas importantes e
poderosas. Era extremamente valorizada por sua habilidade, gentileza e
experiência para lidar com esses passageiros especiais. Nas horas que estava de
folga, tinha uma vida familiar e social intensa. Namorava um rapaz legal,
também dos ares. Eles se entendiam, se gostavam. Tudo estava bem e ela vivia
feliz.
***
Meses depois do nascimento,
tentou retomar a vida profissional. Como a família vivia em outra cidade,
contratou uma babá que pudesse cuidar da filha em sua ausência. A cada novo
vôo, saía de casa de coração apertado, um tanto dividida entre a paixão por
voar e aquela linda bebezinha que, a cada dia, conquistava mais seu amor. Felizmente,
quando estava lá em cima, nas alturas, envolta pelas nuvens, se sentia plena
novamente. E o aperto no coração se afrouxava, dando lugar daquela sensação boa
de fazer o que se gosta...
Num desses dias comuns, à
caminho do aeroporto, recebeu uma ligação de uma vizinha. Sua filha fora vista
em uma região um tanto distante de casa e pouco convencional. A moça,
preocupada, achou melhor avisar. Com o coração disparado, sem poder desistir do
vôo na última hora, tomou as providências possíveis. Ligou chorando para a mãe,
que pegou o primeiro avião para vir ficar com a neta.
Os passageiros não notaram,
mas foram horas de muita angústia e apreensão até que ela voltasse a ter
notícias da filha. Apesar de tudo ter ficado bem, algo havia se quebrado.
A decisão foi difícil, mas
ficar em terra firme se fez necessário. E ela nunca mais voltou a voar profissionalmente.
Alguns anos se passaram, a
filha cresceu e ela se descobriu uma mãe dedicada e hábil.
Durante a semana, acompanha
incansavelmente a filha em suas atividades. Aos finais de semana, sempre está
disposta para receber amiguinhas, inventar um passeio diferente, brincar no
clube ou ir ao cinema. A gentileza, outrora dedicada aos passageiros, continua
sendo uma de suas características marcantes. Está sempre disposta a oferecer uma
carona, ajudar alguma outra mãe mais ocupada ou dar um conselho com seu enorme
bom senso. É daquelas mães que provocam inveja (pelo menos em mim!), de tão
adaptada e feliz que parece estar nesta função.
Outro dia, no entanto, confessou
discretamente que tem se sentido um tanto inquieta, desfrutando da companhia de
uma grande barra de chocolate com bem mais freqüência do que gostaria. Disse
não saber exatamente porquê, já que, aparentemente, está tudo bem com sua
filha, seu marido e sua família. E concluiu, cabisbaixa, que talvez fosse TPM. E
que, em breve, sua inquietude e ansiedade iam passar...
FIM.
***
Depois que são mães, as
mulheres ganham muitas coisas. E esses ganhos são extremamente valorizados e
falados por todos ao redor. Na nossa sociedade, uma mulher com filhos é vista
como alguém realizada que, de alguma forma, cumpriu seu grande papel
existencial. E, por isso, só pode se sentir feliz e completa.
Dentro desse contexto onde só
a felicidade pode existir, o que as mães fazem com os sofrimentos que a
maternidade lhes traz? Com as novas e difíceis decisões que se apresentam
diante delas depois que têm filhos?
Se perguntarmos a elas se vale
à pena, muitas vão dizer que sim. Mas esse fato não anula a dor das perdas e
despedidas que elas tiveram e têm que enfrentar diariamente. E que, muitas e
muitas vezes, não são reconhecidas por aqueles que estão ao seu redor!
Para o mundo seguir seu curso,
uma mulher tem que aceitar se perder um pouco de si mesma para se tornar uma
mãe. Muitas vezes, faz isso no escuro, sob a ilusão de que é um caminho
natural. Tantas outras já o trilharam,
não é mesmo? Por quê comigo seria diferente?, pensam confiantes... E sofrem
sozinhas e envergonhadas diante dos obstáculos que vão encontrando à sua
frente.
Quando é que esse mesmo mundo
aprenderá reconhecer e amparar a dor dessas mulheres, ao invés de ignorá-la ou
chamá-la de fase ou loucura? (ou talvez de TPM, mais politicamente correto).
Quando é que esse mundo vai
poder tolerar olhar para a maternidade de forma menos maniqueísta, aceitando-a
como um caminho de alegria e dor, felicidade
e tristeza, perdas e ganhos, construção e destruição?
Me dou conta que não existe FIM
para a história desta mulher que eu contei acima e de tantas outras na mesma
situação. Felizmente, penso que pode existir o COMEÇO de uma nova história que,
com empenho e coragem, poderemos escrever...
Esse texto é uma homenagem a essa corajosa mulher que abriu mão
dos céus e das belas paisagens do mundo para acompanhar o crescimento de sua
filha aqui em terra firme. E todas as outras também que, com a maternidade,
tiveram que abrir mão de sua carreira, do trabalho, do corpo esbelto, dos olhos
sem olheiras, das viagens, de sonhos, de amores, de manhãs preguiçosas, de
tempo, de paz e da tranqüilidade de poder cuidar somente de si mesmas. E que, com
mais frequência do que gostariam, se lançam culpadas sobre barras de chocolates
e potes de sorvete, chorando escondidas as dores que não sabem nomear. Que,
como eu, amam os filhos com toda sua força, mas não deixam se perguntar todos
os dias, o que fazer para encontrar, de novo, um pouco de espaço para si mesmas...
Isabel Coutinho
é psicóloga, mãe de 2 filhos e autora do livro MÃE EM CONSTRUÇÃO: reflexões, angústias, desafios. Dash Editora.